segunda-feira, 9 de maio de 2011

O Poder da Cura de Nossas Rezadeiras*

Envolto por um misticismo que atravessou os tempos, um grupo de mulheres leva consigo o poder das palavras, da fé e das ervas


Dona Zelina com seu inseparável santinho: "a coisa mais poderosa da minha vida" (Foto por mim)
Muita gente tem a lembrança – distante ou não – de ter sido levado a uma curandeira um dia. A imagem é quase sempre a mesma: uma senhora simpática, misteriosa e cheia de paz. Os métodos são variados, passeiam por banhos de ervas medicinais, lambedores, garrafadas e orações com ramos de folhas. As curandeiras (ou benzedeiras ou rezadeiras, como também podem ser chamadas) surgiram nas culturas africanas e indígenas e são personagens cada vez mais raras nos dias atuais.

Olhado, quebranto, espinhela caída, vento virado, fogo selvagem, ventre caído e erisipela são algumas das doenças quase folclóricas mais comuns no universo popular dessas senhoras.

A antropóloga Sílvia Martins - professora PhD em antropologia e pesquisadora do laboratório de Antropologia Visual em Alagoas (Aval) do Instituto de Ciências Sociais da Ufal – realizou uma pesquisa de campo sobre o xamanismo indígena entre os Kariri-Xocó durante nove meses. A pesquisa serviu de base para o doutorado pela Universidade de Manitoba, no Canadá. Xamãs são os índios curandeiros que, como nossas rezadeiras, praticam os rituais de reza com muita frequência - inclusive para retirar mau olhado, por exemplo – tanto em indígenas como em não indígenas. Conhecimento este, que não só se relaciona com, mas é, na verdade, uma das origens da prática das benzedeiras. Em sua tese, intitulada Gender and Reproduction: Embodiment among the Kariri-Shocó of Northeast Brazil (Gênero e Reprodução: Corporalização entre os Kariri-Xocó do Nordeste do Brasil), descreve rituais e práticas de cura que comprovam como o xamanismo que praticam é um conhecimento médico que tem eficácia.

Ela diz que é preciso destacar que a prática das curandeiras também se trata de um conhecimento médico: “No nosso contexto cultural, há esse reconhecimento de que o mau olhado não é curado pela medicina. Eu conheço casos onde os próprios médicos indicam que se leve o paciente a uma benzedeira”.


Dona Lóla na frente de seu altar, a maioria das imagens foi presente (Foto por mim)

É como se as pessoas escolhidas pelo dom da cura se comunicassem com espíritos que seriam verdadeiros guias e que ditariam os ensinamentos, seja através de sonhos, de vozes ou visões. É um conhecimento empírico, onde o ensinamento prático não existe e não pode ser passado para ninguém. Sílvia diz ter percebido em suas pesquisas, que no xamanismo haveria uma certa expectativa de que numa mesma família, a incidência do dom se manifestar fosse maior pelo fato de elas trabalharem com espíritos específicos, como guardiões. Então, haveria uma continuidade do trabalho. O mesmo poderia acontecer com as curandeiras. A professora também aponta para a seriedade com que são feitos os rituais de rezas, onde se percebe um verdadeiro rito de saída, de realmente tirar aquele mal de dentro do doente: “Não se pode ficar na porta enquanto a benzedeira está rezando em alguém, pois se acredita que o mal vai passar por alí para ir embora, o doente abre a boca para que aquilo saia pelo ar”. Especificamente no xamanismo, acredita-se que o mal se instala nas pessoas que se encontram de “corpo aberto”, então, no ritual de reza, o corpo é fechado e protegido.
A prática das curandeiras é uma verdadeira mistura de elementos indígenas, afro-descendentes e católicos. Por exemplo, o que acontece entre os Kariri-Xocó no ritual, não é que os xamãs enviem o mal para alguém, e sim devolvem, o levam de volta para quem o emitiu. “A noção do bem e do mal é muito clara em todas essas matrizes. Foi isso que possibilitou toda essa troca, essa mistura”, conclui Silvia.


A história das mulheres que tem o dom da cura

A encantadora Dona Lila (Foto por mim)

Leonila Francisca, 75 anos, é a apaixonante Dona Lila. Tem olhos que sorriem e um jeito carinhoso. Natural de Matriz do Camaragibe, veio pra Maceió aos 17 anos trabalhar como doméstica. Tem um centro espírita em casa, onde realiza reuniões semanais; frequenta a igreja católica e segue os fundamentos do Candomblé, dominando, inclusive, o jogo de búzios. Quando perguntada sobre que religião segue, afinal, diz sempre sorridente: “Eu também queria saber! O que eu gosto mesmo é de ajudar os outros”.

Começou a manifestar sua mediunidade muito cedo. Com 7 anos, já recebia entidades: “Minha mãe dizia que eu era doida, porque naquela época ninguém entendia o que era aquilo”. A levaram para ver um senhor espírita, que disse que “a menina tinha um mistério”. Ficou com tanto medo, que correu para a igreja e fez tudo quanto é promessa para tentar se livrar daquilo. Pagou inúmeros juramentos, todos em vão. “Eu não queria me assumir de jeito nenhum, tinha muito medo”, admite.

Teve que se entregar depois de um sonho que teve. Sonhou com uma moça de cabelos compridos, vestida de calça jeans e camisa de manga comprida azul que chegava em sua casa para receber uma cura. No outro dia, a mulher apareceu exatamente como no sonho: “Aí não teve jeito, tive que aceitar”.

Frequentou a Federação Espírita por alguns anos e também passou um tempo no Candomblé, mas depois da morte da mãe e do pai-de-santo responsáveis pelo terreiro, não voltou mais. Prefere hoje, fazer tudo do seu jeito.

Com relação às curas, diz que as realiza há muito tempo. Desde criança, quando a mãe ou os irmãos adoeciam, ela prontamente pegava qualquer galhinho e dizia que ia curá-los. “A primeira pessoa que eu curei, foi o meu irmão. Ele comeu uma jaca mole e passou muito mal. No meio da noite, alguma coisa me tomou e fui atrás dos restos da jaca que ele tinha comido e fiz um chá. Ele tomou, vomitou todos os caroços e ficou bom. Fiz isso tudo fora de mim, eu não lembro de nada, quem contou foi minha mãe. Disse que meus lábios de repente cresceram. Era o caboclo me tomando”, conta.

Dona Lila não sabe ler, nem escrever, mas diz que o que sabe “ninguém aprende em escola, é um dom que Deus dá”. Também não cobra nada por suas bênçãos e não tem hora para receber quem precisa de ajuda: “As pessoas vem a qualquer hora, vem desesperadas e pedem pelo amor de Deus. Falou em Deus, minha filha, eu não tenho como negar”.
D. Zelina com seu cachimbo (Foto por mim)
Zelina Sebastiana dos Santos, 71 anos, é uma índia migrada para a cidade grande. Jeito sereno, simples e dona de uma risada sincera e gostosa. Nasceu numa aldeia em Palmeira dos Índios, só lembra que “a mãe endoideceu” e que ficou sozinha no mundo muito cedo. Chegou a trabalhar num engenho cortando cana e aos 13 anos se casou com um homem muito mais velho, que faleceu com apenas três anos de casamento. Ainda trabalhou como parteira por volta dos 18 anos e com essa idade já mostrava ter uma certa habilidade para lidar com vidas. Já nessa época, tinha receitas especiais, como um caldo feito com pimenta do reino que estimulava as contrações do parto e um curativo com panos queimados de fumo para que o umbigo do bebê caísse em três dias (curativo esse, que, segundo ela, ainda hoje é imbatível).

“Não sei ler, não sei escrever, não sei nada. Mas sei todas as minhas orações e é o que importa”, é categórica. Por ser índia, diz que as pessoas começaram a procurá-la para curas, mas que não sabe dizer como começou a, de fato, realizá-las. Também não tem ideia de como aprendeu tudo o que sabe: “Nunca ninguém me ensinou nada, tudo chegou em mim como um dom”. Prepara garrafadas de todos os tipos e com uma quantidade enorme de ingredientes: vinho branco, raiz de caiubim, raiz de jurubeba, samba-caitá, pega-pinto, banana papagaio, rosa garrida, pra-tudo, babosa, pinhão roxo, atelã de Santa Bárbara, flor de colônia e mais ainda uma infinidade plantas de nomes populares.

Como uma boa devota do Padre Cícero, tem uma relação forte com Juazeiro do Norte, para onde viaja sempre que pode para ver seu santo padrinho e trazer o Bálsamo da Vida, um elixir que se acredita ter sido receita do próprio Padrinho Cícero e que cura tudo. Foi lá que ganhou o que, segundo ela, é a coisa mais poderosa de sua vida: uma miniatura de Santo Antônio Caminhante. O segredo é fazer um pedido e esconder a criança que ele carrega, só devolvendo-a quando obtiver o que se deseja.
Dona Lóla e suas plantas (Foto por mim) Jacira Pereira, 75 anos, é a dona Lóla, como é conhecida. Exala sabedoria, segurança e respeito. Só veste azul e branco, as cores de Nossa Senhora. Nasceu no litoral norte de Maceió, onde vive até hoje. Desde criança, diz que gostava de aconselhar as pessoas e que sempre sentiu que era diferente. Católica fervorosa, já quis ser freira, mas acabou por se casar. É analfabeta, mas trabalhou muito tempo com artesanato, atividade com a qual conseguiu criar sozinha os sete filhos, frutos de dois casamentos: “Eu não leio, não estudei, não sei de nada. Eu só sei, é uma luz divina”.

Neta da também curandeira, Hortência Pereira, cresceu vendo as atividades da avó, a quem tinha uma ligação forte, mas nunca quis seguir seus passos. Um dia foi acometida por uma erisipela (uma infecção de pele que invade a gordura e se instala nos vazos linfáticos) que não sarava de jeito nenhum e assim, durou muito tempo. Nas crises enfrentadas por causa da doença - talvez em um estado onírico - ouvia vozes estranhas e em meio à agonia, fez um voto de que se ficasse boa, curaria quem precisasse, sem cobrar nada por isso. Promessa esta, que é cumprida seriamente até hoje.

Dona Lóla conta que ainda lembra da primeira cura que realizou, há mais ou menos 35 anos atrás: “Uma menina chegou aqui chorando, muito atordoada, com uma dor de cabeça muito forte. Eu coloquei minhas mãos nela e rezei. Ela ficou boa e espalhou pras pessoas. Depois desse dia, muita gente começou a me procurar”.

Apesar das condições humildes, faz muita caridade e para ela chega a ser uma ofensa querer pagar pelas suas bênçãos: “Eu não cobro um centavo porque não sou eu quem cura, é Deus”, esclarece. Orações, cantos, velas, plantas, garrafadas e lambedores são seus únicos instrumentos. “Eu acendo a vela e assim, consigo saber o estado da pessoa, é o meu contato com o anjo da guarda”, explica, frisando que coisa que aceita de bom grado é doação de velas, já que as usa em excesso.

Há dois anos, sua saúde começou a pedir atenção. O ritmo de trabalho era pesado demais, as pessoas desesperadas batiam em sua porta até pela madrugada. Desde então, aconselhada por seu médico, durante quatro dias na semana, no período da tarde, distribui senhas para o atendimento, embora confesse que é impossível recusar ajuda a qualquer pessoa que a procure: “Me sinto mal em negar”.

Pessoas de diferentes classes sociais procuram ajuda na religiosidade popular das benzedeiras. A dona de casa Adjane Lima, 18 anos, diz que percebeu que sua filha de 20 dias estava bocejando demais, muito quietinha e abatida. Recebeu conselhos para levá-la até a casa de Dona Lila, que é muito conhecida no bairro do Jacintinho, onde mora. “A cura dela é de 3 dias. No primeiro, ela rezou na neném e amarrou essa fitinha vermelha no braço dela. É a segunda vez que venho e já senti melhora”, conta. A professora aposentada, Maria das Graças Carvalho, 60 anos, conta que cresceu ouvindo que existem pessoas que tem energia negativa que até sem querer, podem lhe fazer mal: “Já aconteceu comigo de, em um ambiente de trabalho, eu começar a murchar mesmo, como uma planta. Passei mal e depois me levaram numa benzedeira. Ela me abraçou, me recebeu com muita alegria e rezou em mim. Melhorei muito e depois disso, cansei de levar meus filhos pra ela tirar mau olhado. É o poder da fé”.

Olhado, espinhela caída e os males que são curados pela fé, nunca nas farmácias

Dona Lila no momento em que rezava um bebê (Foto por mim)

Mau olhado (ou quebranto) é a doença causada pela energia negativa do olhar de pessoas invejosas ou maldosas. Muitas vezes não é intencional, mas sua força pode esmorecer o alvejado, causando sintomas de depressão, como angústia, pessimismo, nervosismo exagerado e até insônia. Sabe-se que foi atingido quando de repente começa a espirrar e bocejar sem parar.

Espinhela caída é o nome popular de uma doença chamada Lumbago. Causa dor na boca do estômago, costas e pernas e cansaço físico anormal. Espinhela é um osso pequeno que fica no meio do peito, entre o coração e o estomago que pode envergar para dentro. A benzedeira tira a medida do dedo mínimo ao cotovelo e depois, de um ombro a outro, se as medidas não coincidirem, é detectada a doença. Segundo a crença, médicos não conseguem identificar.

Vento (ou Ventre) Virado é mais acometido em crianças, geralmente quando se brinca de jogá-las para o alto. Basicamente é a sujeição a uma força maior do que se está acostumado. Causa mal estar, vômito e diarréia. As benzedeiras viram a criança de cabeça para baixo e batem seus pés na folha de uma porta.

Fogo selvagem é uma doença de pele, cientificamente conhecida como Pênfigo. Nascem bolhas no couro cabeludo, peito e costas e podem se espalhar pelo corpo todo – até internamente, quando mais grave. Não se sabe o que causa, mas o remédio é uma benzeção.

Erisipela é uma infecção de pele causada por bactérias e pode ser acompanhada de febre. Invade a gordura e se espalha pelos vazos linfáticos. Geralmente ataca as pernas, principalmente de mulheres. Aprincípio, aparecem manchas vermelhas, depois incham e surgem bolhas. Também é conhecida por Vermelhão e Gota.


Fotos e Texto: Larissa Fontes

*Matéria publicada no O Jornal do dia 3 de Abril de 2011, na página Universidades e ganhadora do Prêmio Braskem de Jornalismo 2011, na categoria estudante.