sábado, 25 de outubro de 2008

Desespero da piedade


Meu Senhor, tende piedade dos que andam de bonde e sonham no longo percurso com automóveis, apartamentos;

Mas tende piedade também dos que andam de automóvel quando enfrentam a cidade movediça de sonâmbulos na direção.

Tende piedade das pequenas famílias suburbanas e em particular dos adolescentes que se embebedam de domingos.
Mas tende mais piedade ainda de dois elegantes que passam e sem saber, inventam a doutrina do pão e da guilhotina.

Tende muita piedade do mocinho franzino, três cruzes, poeta, que só tem de seu as costeletas e a namorada pequenina.
Mas tende mais piedade ainda do impávido, forte, colosso do esporte, que se encaminha lutando, remando, nadando pra morte.

Tende imensa piedade dos músicos de cafés e casas de chá, que são virtuosos da própria trizteza e solidão.
Mas tende piedade também dos que buscam o silêncio e súbito se abate sobre eles uma área da Tosca.

Não esqueçais também, em vossa piedade, os pobres que enriqueceram e para quem o suicídio ainda é a mais doce solução.
Mas tende realmente piedade dos ricos que empobreceram e tornam-se heróicos, que a santa pobreza dá um ar de grandeza.

Tende infinita piedade dos vendedores de passarinhos, que em suas alminhas claras deixam a lágrima e a imcompreensão.
E tende piedade também, menor embora, dos vendedores de balcão que amam as freguesas e saem de noite, quem sabe onde vão...

Tende piedade dos barbeiros em geral, e dos cabeleireiros, que se enfeminam por profissão, mas que são humildes em suas carícias.
Mas tende mais piedade ainda dos que cortam o cabelo, que espera, que angústia, que indigno, meu Deus!

Tende piedade dos sapateiros e caxeiros de sapataria, que lembram madalenas arrependidas pedindo piedade pelos sapatos.
Mas lembrai-vos também dos que se calçam de novo, nada pior que um sapato apertado, Senhor Deus.

Tende piedade dos homens úteis como os dentistas, que sofrem de utilidade e vivem para fazer sofrer.
Mas tende mais piedade dos veterinários e práticos de farmácia, que muito eles gostariam de ser médicos, Senhor.

Tende piedade dos homens públicos e em particular dos políticos, pela sua fala fácil, olhar brilhante e segurança dos gestos de mão.
Mas tende mais piedade ainda dos seus criados, próximos e parentes. Fazei, Senhor, com que deles não saiam políticos também.

E no longo capítulo das mulheres, Senhor, tende piedade das mulheres. Castigai minha alma, mas tende piedade das mulheres. Enlouquecei meu espírito, mas tende piedade das mulheres. Ulcerai minha carne, mas tende piedade das mulheres!

Tende piedade da moça feia, que serve na vida de casa, comida e roupa lavada da moça bonita.
Mas tende mais piedade ainda da moça bonita, que o homem molesta, que o homem não presta, não presta, meu Deus!

Tende piedade das moças pequenas das ruas tranversais, que de apoio na vida só tem Santa Janela da Consolação e sonham exaltadas nos quartos humildes, os olhos perdidos e o seio na mão.

Tende piedade da mulher no primeiro coito, onde se cria a primeira alegria da Criação e onde se consuma a tragédia dos anjos e onde a morte encontra a vida em desintegração.

Tende piedade da mulher no instante do parto, onde ela é como a água explodindo em convulsão, onde ela é como a terra vomitando cólera, onde ela é como a lua parindo desilusão.

Tende piedade das mulheres chamadas desquitadas, porque nelas se refaz misteriosamente a virgindade.
Mas tende piedade também das mulheres casadas, que se sacrificam e se simplificam a troco de nada.

Tende piedade, Senhor, das mulheres chamadas vagabundas, que são desgraçadas e são exploradas e são infecundas, mas que vendem barato muito instante de esquecimento e em paga o homem mata com a navalha, como fogo, com o veneno.

Tende piedade, Senhor, das primeiras namoradas, de corpo hermético e coração patético, que saem à rua felizes, mas que sempre entram desgraçadas, que se crêem vestidas, mas que em verdade vivem nuas.

Tende piedade, Senhor, de todas as mulheres. Que ninguém mais merece tanto amor e amizade, que ninguém mais deseja tanto poesia e sinceridade, que ninguém mais precisa tanto de alegria e serenidade.

Tende infinita piedade delas, Senhor, que são puras, que são crianças e são trágicas e são belas. Que caminham ao sopro dos ventos e que pecam e que tem a única emoção da vida nelas.

Tende piedade delas, Senhor, que uma me disse ter piedade de si mesma e de sua louca mocidade. E outra, à simples emoção do amor piedoso delirava e se desfazia em gozos de amor de carne.

Tende piedade delas, Senhor, que dentro delas a vida fere mais fundo e mais fecundo. E o sexo está nelas, e o mundo está nelas e a loucura reside nesse mundo.

Tende piedade, Senhor, das santas mulheres, dos meninos velhos, dos homens humilhados. Sede enfim piedoso com todos, que tudo merece piedade.
E se piedade vos sobrar, Senhor, tende piedade de mim!

Vinícius de Moraes

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